domingo, janeiro 15, 2006

Sem lenço, sem documento...

Tudo começou no dia treze do mês oito do décimo quarto ano depois que Verselêncio sumiu-se lago a diante. Assim contou a D. Berta, que passava as tardes crocheteando tranças com os restos de fio que ficaram no pátio da fábrica abandonada. Trança, argola, trança, argola, trança... até juntar o suficiente para uma cortina a ser vendida na feira de artesanato da paróquia, dia e meio antes da quermesse. O sinal do fim do começo dos tempos, tão bem marcado foi dado pelo vento, que soprou a areia das folhas em caracol, sobre os blocos de pedra, nas ruas da vila, quando o Cramunhão chegou, arrastando uma mala cheia de pratas, cobres e ouros. Para distribuir a quem lhe fosse previsível.

Vendeu-se a cortina de tranças e argolas e restos de fio. Fez-se festa com bolo de fubá, pipoca e quentão, muito ki-suco vermelho pros bacuris. Vivonéia-sempre-bela, de vestido floreado, uma uva de menina, enamorou-se do Laurecir que morava atrás da Serra-Braba. E então, exatas quatro luas depois, estava decidido: que montado num cavalo, ele atravessaria o crespo mato para oficializar o interesse. Só que não contou com a astúcia do Quim Saravá, que, do alto do portão, escondido, saltou de capa preta, zurrando feito o quê na frente da montaria. O bicho apavorado deu pinote que jogou o pobre Laurecir de cabeça numa pedra. E lá ficou desmaiado.

Dá-lhe reza forte pro mancebo acordar. Ordenaram até que as mulheres fizessem xixi na latinha pra lhe jogar na cara e nada. Sete minutos depois de três horas e meia de aflição ele abre o olho esquerdo, atirado numa sala esquizita com teto de madeira pintada em forma de estrela.

O relógio parou, o sino badalou, o Cramunhão sentou na cadeira de balanço que Berta desocupou para ver a chaleira na cozinha e Verselêncio, branco que nem farinha de rosca, entrou pela janela, garantindo a volta de uma espera que nem existia mais.

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